Jejum: Uma Jornada Histórica, Espiritual e Científica

O jejum, prática milenar de abstinência voluntária de alimentos por períodos determinados, transcende culturas, religiões e épocas. Longe de ser apenas uma privação alimentar, representa um complexo ritual com profundas implicações espirituais, terapêuticas e sociais. Este artigo explora a fascinante trajetória do jejum desde as civilizações antigas até sua redescoberta na sociedade contemporânea, analisando seus múltiplos significados, bases científicas e impactos na saúde física e mental.
Origens nas Civilizações Antigas
O jejum figura entre as práticas mais antigas da humanidade. Evidências arqueológicas e registros históricos sugerem que civilizações como a egípcia, grega e romana já incorporavam períodos de abstinência alimentar em seus rituais. Hipócrates, considerado o pai da medicina, recomendava o jejum como método terapêutico, afirmando que “estar sem comer por um dia é bom para a saúde”. Na Grécia Antiga, o jejum era praticado nos Mistérios de Elêusis, importantes celebrações religiosas dedicadas às deusas Deméter e Perséfone.
No Egito Antigo, sacerdotes jejuavam antes de rituais importantes para purificar o corpo e a mente, preparando-se para comunicação com divindades. Os registros em papiros médicos egípcios já mencionavam o jejum como tratamento para diversas enfermidades, demonstrando uma compreensão intuitiva de seus benefícios terapêuticos.
Na Índia antiga, através da Medicina Ayurvédica, o Jejum (upavasa) originou-se entre 3.000-5.000 a.C. ,sendo formalizado nos textos Charaka Samhita e Sushruta Samhita (1000-800 a.C.). Esta prática terapêutica evoluiu através de diferentes períodos históricos e influências religiosas do Hinduísmo e Budismo.
O Jejum nas Tradições Religiosas
Cristianismo
No Cristianismo, o jejum possui raízes profundas, inspiradas pelo próprio exemplo de Jesus Cristo, que jejuou por 40 dias no deserto antes de iniciar seu ministério público. Este período inspirou a Quaresma, tempo de preparação para a Páscoa, quando muitos cristãos praticam alguma forma de jejum ou abstinência. Nas tradições católica e ortodoxa, o jejum é observado em momentos litúrgicos específicos como forma de penitência, purificação espiritual e solidariedade com os necessitados.
Santo Agostinho descreveu o jejum como “purificação da alma”, enquanto São Basílio o chamava de “alimento para a alma”. Na tradição monástica cristã, particularmente entre os Padres do Deserto, o jejum era prática fundamental para o controle das paixões e elevação espiritual.
Islamismo
No Islã, o jejum (sawm) constitui um dos cinco pilares fundamentais da fé. Durante o mês sagrado do Ramadã, muçulmanos abstêm-se de comida, bebida e relações sexuais do nascer ao pôr do sol. Mais que uma simples privação física, o Ramadã representa um período de intensa devoção, autodisciplina e solidariedade comunitária. O Profeta Muhammad também praticava jejuns voluntários em outros momentos do ano, como às segundas e quintas-feiras.
O Alcorão afirma: “Ó vós que credes! O jejum vos é prescrito, assim como foi prescrito àqueles antes de vós, para que alcanceis a piedade” (2:183), destacando a continuidade desta prática através das tradições abraâmicas.
Budismo
Na tradição budista, Sidarta Gautama experimentou jejuns extremos durante sua busca pela iluminação, chegando quase à inanição. Embora tenha posteriormente rejeitado o ascetismo extremo em favor do “Caminho do Meio”, o jejum moderado permaneceu como prática importante para monges e praticantes budistas. Em muitas tradições budistas, monges não consomem alimentos sólidos após o meio-dia, uma forma de jejum intermitente que visa promover clareza mental e moderação.
Judaísmo
No Judaísmo, o jejum mais significativo ocorre durante o Yom Kippur (Dia da Expiação), quando judeus abstêm-se de comida e bebida por aproximadamente 25 horas em busca de perdão e purificação espiritual. Outros jejuns importantes incluem Tisha B’Av, que comemora a destruição dos Templos de Jerusalém, e jejuns menores como Ta’anit Esther, antes da festa de Purim.
Hinduísmo
O Hinduísmo incorporou o jejum em suas práticas devocionais, enquanto textos médicos como Ashtanga Hridaya desenvolveram protocolos específicos para diferentes desequilíbrios dóshicos, consolidando o jejum como pilar da medicina ayurvédica.
Tradições Indígenas
Nas culturas indígenas ao redor do mundo, o jejum frequentemente integra rituais de passagem e cerimônias xamânicas. Entre povos nativos norte-americanos, a “busca de visão” (vision quest) inclui períodos de jejum na natureza, buscando orientação espiritual e conexão com o mundo dos espíritos. Similarmente, entre povos amazônicos, o jejum frequentemente precede o uso de plantas medicinais em cerimônias, preparando o corpo e a mente para experiências transcendentais.
Significados e Simbolismos do Jejum

Purificação e Renovação
Em praticamente todas as tradições, o jejum simboliza purificação e renovação. A abstinência alimentar representa a limpeza não apenas do corpo físico, mas também da mente e do espírito. Esta purificação transcende o aspecto meramente fisiológico, alcançando dimensões psicológicas e espirituais.
O simbolismo da purificação através do jejum está frequentemente associado a rituais de passagem ou momentos de transição. Ao abster-se de alimentos, o indivíduo simbolicamente “morre” para velhos hábitos e padrões, preparando-se para renascer em um estado renovado. Esta concepção é particularmente evidente em tradições como o Ramadã islâmico e a Quaresma cristã, que culminam em celebrações de renovação (Eid al-Fitr e Páscoa, respectivamente).
O Jejum como Sacrifício e Disciplina
O elemento sacrificial do jejum está presente em diversas tradições. Abdicar do alimento – necessidade básica para sobrevivência – representa um sacrifício simbólico que demonstra devoção e compromisso espiritual. Este sacrifício voluntário também desenvolve autodisciplina e fortalecimento da vontade, qualidades valorizadas em praticamente todas as tradições espirituais.
Na tradição judaica, o jejum de Yom Kippur simboliza o sacrifício pessoal necessário para a expiação dos pecados. No Cristianismo, o jejum quaresmal remete ao sacrifício de Cristo e prepara os fiéis para compreender e vivenciar o mistério pascal.
Jejum como Caminho para Iluminação: Buda e Jesus
Tanto Buda quanto Jesus utilizaram o jejum como parte de suas jornadas espirituais, embora com abordagens distintas que refletem as diferenças fundamentais entre suas tradições.
Sidarta Gautama, antes de se tornar o Buda, praticou austeridades extremas, incluindo jejuns severos que o levaram próximo à morte. No entanto, ele eventualmente abandonou estas práticas extremas, reconhecendo que o corpo enfraquecido não poderia sustentar a mente clara necessária para a iluminação. Esta experiência levou-o a formular o “Caminho do Meio”, evitando tanto a indulgência quanto a automortificação extrema. O jejum moderado, contudo, permaneceu como prática importante no budismo, especialmente entre monges que seguem a regra de não comer após o meio-dia.
Jesus, por sua vez, jejuou por 40 dias no deserto antes de iniciar seu ministério público, conforme relatado nos evangelhos. Durante este período, enfrentou tentações que representavam desafios à sua missão messiânica. Este jejum prolongado simboliza preparação espiritual, fortalecimento interior e resistência às tentações mundanas. Diferentemente de Buda, Jesus não rejeitou o jejum como prática espiritual, mas advertiu contra sua observância hipócrita ou ostensiva, enfatizando a importância da intenção correta: “Quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas” (Mateus 6:16).
Contrastes Culturais e Interpretações
As interpretações do jejum variam significativamente entre culturas. Nas tradições ocidentais, particularmente influenciadas pelo cristianismo, o jejum frequentemente carrega conotações de penitência e mortificação da carne. Em contraste, tradições orientais como o hinduísmo e o budismo tendem a enfatizar o jejum como meio para clareza mental e elevação espiritual.
Na contemporaneidade, observa-se uma crescente secularização do jejum, com ênfase em seus benefícios para saúde física e mental, desvinculados de contextos religiosos específicos. Esta tendência reflete a adaptação de práticas ancestrais às necessidades e valores da sociedade moderna.
–> Embasamento Científico do Jejum
Processos Fisiológicos Durante o Jejum
O corpo humano passa por transformações significativas durante períodos de jejum, ativando mecanismos evolutivos desenvolvidos para otimizar a sobrevivência em tempos de escassez alimentar.
Fases Metabólicas do Jejum
- Fase Pós-absortiva (0-6 horas): Após a digestão completa da última refeição, o corpo utiliza glicogênio hepático para manter os níveis de glicose sanguínea.
- Fase Gluconeogênica (6-24 horas): Com o esgotamento das reservas de glicogênio, o corpo inicia a gluconeogênese, produzindo glicose a partir de aminoácidos e glicerol.
- Fase Cetogênica (24-72 horas): O fígado começa a produzir corpos cetônicos a partir de ácidos graxos, fornecendo combustível alternativo para o cérebro e reduzindo a necessidade de proteólise muscular.
- Fase de Conservação Proteica (72+ horas): Em jejuns prolongados, o corpo adapta-se para minimizar a degradação proteica, aumentando a eficiência na utilização de corpos cetônicos e ácidos graxos.
Autofagia: O Processo de Reciclagem Celular
Um dos mecanismos mais fascinantes ativados pelo jejum é a autofagia, processo pelo qual células “reciclam” componentes danificados ou disfuncionais. Este mecanismo, cuja descoberta rendeu o Prêmio Nobel de Medicina a Yoshinori Ohsumi em 2016, representa um sistema de controle de qualidade celular que pode retardar o envelhecimento e prevenir doenças degenerativas.
Durante a autofagia, vesículas especiais (autofagossomos) englobam organelas danificadas e proteínas mal dobradas, fundindo-se posteriormente com lisossomos para degradação e reciclagem destes componentes. Estudos demonstram que a autofagia é significativamente estimulada após 16-24 horas de jejum.
–> Evidências Científicas dos Benefícios do Jejum
Jejum e Doenças Metabólicas
Pesquisas recentes têm demonstrado efeitos promissores do jejum intermitente no tratamento de condições metabólicas como diabetes tipo 2 e síndrome metabólica. Um estudo publicado no Cell Metabolism em 2019 demonstrou que o jejum intermitente pode melhorar a sensibilidade à insulina e reduzir a resistência insulínica mesmo sem perda de peso significativa.
Para pacientes com diabetes tipo 2, o jejum intermitente tem demonstrado potencial para reduzir a medicação necessária e, em alguns casos, promover remissão da doença. Um estudo conduzido pela Universidade de Toronto mostrou que períodos alternados de jejum e alimentação melhoraram significativamente o controle glicêmico em pacientes diabéticos.
Jejum e Obesidade
O jejum intermitente emergiu como estratégia eficaz para controle de peso, não apenas por reduzir a ingestão calórica total, mas também por otimizar hormônios relacionados ao metabolismo. Durante o jejum, observa-se aumento nos níveis de hormônio do crescimento (GH), norepinefrina e adiponectina, que favorecem a mobilização e oxidação de gorduras.
Uma meta-análise publicada no International Journal of Obesity analisou 40 estudos sobre jejum intermitente, concluindo que este padrão alimentar promove redução de peso corporal e gordura visceral comparável às dietas de restrição calórica contínua, porém com maior aderência a longo prazo.
Jejum e Câncer
Evidências preliminares sugerem que o jejum pode sensibilizar células cancerígenas à quimioterapia enquanto protege células normais, fenômeno conhecido como “proteção diferencial”. Estudos em modelos animais demonstraram que ciclos de jejum podem reduzir efeitos colaterais da quimioterapia e potencializar sua eficácia.
Pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia, liderados por Valter Longo, demonstraram que jejuns curtos (48-72 horas) antes da quimioterapia podem melhorar significativamente a tolerância ao tratamento e seus resultados. Contudo, é importante ressaltar que pacientes oncológicos devem consultar suas equipes médicas antes de implementar qualquer protocolo de jejum.
Jejum e Longevidade
Estudos em diversos organismos, de leveduras a primatas, sugerem que a restrição calórica e jejum intermitente podem estender a longevidade e melhorar biomarcadores associados ao envelhecimento. Os mecanismos propostos incluem redução do estresse oxidativo, diminuição da inflamação crônica e ativação de vias de sinalização associadas à longevidade, como AMPK e sirtuínas.
Um estudo de 2019 publicado na Cell Metabolism demonstrou que mesmo cinco dias mensais de dieta que simula jejum (fasting-mimicking diet) podem reduzir fatores de risco para doenças associadas ao envelhecimento em humanos saudáveis.
Jejum e Saúde Neurológica
Pesquisas emergentes sugerem benefícios neuroprotetores do jejum intermitente. Durante períodos de jejum, o cérebro aumenta a produção do fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF), proteína que promove a sobrevivência de neurônios existentes e estimula a neurogênese.
Estudos em modelos animais demonstram que o jejum intermitente pode reduzir o risco de doenças neurodegenerativas como Alzheimer e Parkinson, além de melhorar a recuperação após lesões cerebrais. Em humanos, evidências preliminares sugerem melhora na cognição e humor após períodos de jejum intermitente.
–> A Redescoberta do Jejum na Contemporaneidade
Fatores para o Ressurgimento do Interesse
O renovado interesse pelo jejum na sociedade contemporânea pode ser atribuído a diversos fatores convergentes:
- 1. Crise do Modelo Biomédico Convencional: A crescente insatisfação com abordagens puramente farmacológicas para doenças crônicas tem levado muitos a buscar intervenções baseadas em estilo de vida.
- 2. Epidemia de Doenças Metabólicas: O aumento alarmante de obesidade, diabetes e síndrome metabólica tem estimulado a busca por estratégias efetivas de prevenção e tratamento.
- 3. Avanços Científicos: Pesquisas recentes elucidando os mecanismos moleculares do jejum têm proporcionado legitimidade científica a esta prática ancestral.
- 4. Busca por Simplicidade: Em uma era de excesso informacional e material, o jejum representa uma intervenção simples, acessível e potencialmente transformadora.
- 5. Interesse em Práticas Ancestrais: O crescente reconhecimento da sabedoria contida em tradições antigas tem levado à reavaliação de práticas como o jejum sob perspectivas contemporâneas.
Modalidades Contemporâneas de Jejum
Jejum Intermitente:
O jejum intermitente tornou-se provavelmente a modalidade mais popular na atualidade, com diversos protocolos adaptados a diferentes necessidades e preferências:
- a) Método 16/8: Concentra a alimentação em uma janela de 8 horas, com jejum nas 16 horas restantes. Por exemplo, alimentação entre 12h e 20h, com jejum das 20h às 12h do dia seguinte.
- b) Dieta 5:2: Consiste em alimentação normal cinco dias por semana, com restrição calórica severa (500-600 calorias) nos outros dois dias, não consecutivos.
- c) Jejum em Dias Alternados (ADF): Alterna dias de alimentação normal com dias de jejum completo ou restrição calórica significativa.
- d) Método Eat-Stop-Eat: Inclui um ou dois jejuns de 24 horas por semana, geralmente do jantar de um dia ao jantar do dia seguinte.
- e) Protocolo OMAD (One Meal A Day): Concentra toda a ingestão calórica diária em uma única refeição, geralmente com duração de uma hora.
Jejum Prolongado:
Jejuns de múltiplos dias (48 horas a várias semanas) são praticados geralmente com objetivos terapêuticos específicos ou como “reset” metabólico. Devido à sua intensidade, jejuns prolongados devem idealmente ser supervisionados por profissionais de saúde, especialmente para indivíduos com condições médicas preexistentes.
Dietas que Simulam Jejum (Fasting-Mimicking Diets):
Desenvolvidas pelo pesquisador Valter Longo, estas dietas proporcionam nutrição mínima (geralmente 800-1100 calorias/dia com composição específica) que mantém o corpo em estado metabólico similar ao jejum completo, porém com menor desconforto e maior segurança para jejuns prolongados.
Dry Fasting (Jejum Seco):
Esta modalidade controversa envolve abstinência tanto de alimentos quanto de líquidos. Praticada em algumas tradições religiosas como o Ramadã, o jejum seco apresenta riscos significativamente maiores que o jejum com hidratação, particularmente desidratação e desequilíbrios eletrolíticos. Por estas razões, não é geralmente recomendada para fins terapêuticos.
Integração do Jejum em Práticas Contemporâneas de Saúde
O jejum tem sido progressivamente incorporado em abordagens integradas de saúde, frequentemente combinado com outras intervenções:
- Medicina Funcional: Profissionais de medicina funcional frequentemente recomendam protocolos de jejum como parte de programas abrangentes para tratamento de condições inflamatórias e autoimunes.
- Retiros de Bem-estar: Centros de bem-estar ao redor do mundo oferecem programas supervisionados de jejum, combinados com práticas como meditação, yoga e terapias complementares.
- Medicina Preventiva: O jejum intermitente tem sido incorporado em protocolos de medicina preventiva, visando otimizar biomarcadores metabólicos e reduzir riscos de doenças crônicas.
- Nutrição Personalizada: Profissionais de nutrição têm incorporado protocolos de jejum personalizados, adaptados às necessidades metabólicas, objetivos e preferências individuais.
–> Reflexões Psico-sociais e Conexões Transcendentais
Resgate de Sabedorias Ancestrais
A redescoberta do jejum ilustra um fenômeno mais amplo de reavaliação de práticas ancestrais sob perspectivas contemporâneas. Este movimento representa não apenas nostalgia, mas reconhecimento da profunda sabedoria contida em tradições desenvolvidas e refinadas ao longo de milênios.
As práticas ancestrais como o jejum frequentemente incorporam compreensões intuitivas sobre processos fisiológicos que a ciência moderna apenas recentemente começou a validar. Esta convergência entre sabedoria tradicional e ciência contemporânea sugere a importância de abordagens integradas que respeitem tanto o conhecimento ancestral quanto as descobertas científicas recentes.
Jejum e Desenvolvimento Neuropsíquico
Além de seus efeitos fisiológicos, o jejum pode promover transformações significativas na cognição e percepção. A clareza mental frequentemente relatada durante o jejum pode ser parcialmente explicada por adaptações neurobiológicas, incluindo aumento na produção de BDNF e otimização da sinalização neuronal.
Do ponto de vista psicológico, o jejum representa um exercício de autodisciplina e consciência que pode fortalecer a autorregulação e resiliência emocional. A experiência de superar desconforto inicial e descobrir recursos internos inesperados frequentemente transforma a relação do indivíduo com seus impulsos e necessidades.
O “Self” como Protagonista
A prática do jejum convida o indivíduo a assumir protagonismo ativo em sua saúde e bem-estar, contrastando com abordagens passivas que delegam responsabilidade exclusivamente a intervenções externas. Este protagonismo estende-se além do indivíduo, conectando-o a uma linhagem de praticantes que atravessa gerações e culturas.
Ao jejuar, o indivíduo participa simultaneamente de uma prática profundamente pessoal e universalmente humana, estabelecendo conexões que transcendem barreiras temporais, geográficas e culturais. Esta dupla dimensão – profundamente individual e amplamente coletiva – confere ao jejum seu poder transformador único.
O Jejum e a Psicologia: Autoconhecimento, Jung e Freud
Sigmund Freud, fundador da psicanálise, não focou diretamente no jejum, mas abordou a relação simbólica do corpo com o inconsciente. No campo da privação, Freud via o alimento não só como satisfação biológica, mas também como expressão dos desejos reprimidos e mecanismo de controle do ego.
Carl Gustav Jung, por sua vez, enxergava o jejum como caminho para individuação e integração dos arquétipos inconscientes. Em suas obras, Jung destaca que rituais de privação, como o jejum, servem a dois propósitos principais: intensificar a consciência do self e propiciar estados alterados nos quais o indivíduo vai além dos condicionamentos sociais para se encontrar com “o sagrado” e seus próprios símbolos internos.
“O jejum pode ser vivido como rito de passagem para a maturidade psicológica, criando a oportunidade única de resignificar o próprio papel diante do legado familiar, dos ancestrais e da comunidade.” (JUNG, C.G., “Símbolos da Transformação”, 1952)
Ao jejuar, muitos relatam sensação de clareza inédita, aprofundamento das emoções e surgimento de insights. A Psicologia Analítica de Jung chama a atenção para a integração da “sombra”, tornando consciente o que antes era inconsciente através da superação da fome física e dos condicionamentos mentais.
Jejum como Prática de Presença e Consciência
Em uma sociedade caracterizada por consumo constante e estímulos incessantes, o jejum representa um contraponto radical – um espaço de pausa, reflexão e presença. A abstinência temporária de alimentos cria oportunidade para maior consciência não apenas sobre padrões alimentares, mas sobre relacionamentos, valores e prioridades.
Muitos praticantes relatam que o jejum catalisa insights significativos sobre aspectos de suas vidas aparentemente não relacionados à alimentação. Esta expansão de consciência pode ser compreendida como resultado da liberação de energia e atenção normalmente dedicadas à digestão e processamento de alimentos.
O Jejum como Ponte Entre Tradição e Inovação
O jejum representa um fascinante ponto de convergência entre sabedoria ancestral e ciência de ponta, entre práticas espirituais milenares e intervenções terapêuticas contemporâneas. Sua presença constante através de culturas e épocas sugere que esta prática responde a necessidades humanas fundamentais – físicas, psicológicas e espirituais.
Na contemporaneidade, o jejum emerge como ferramenta potencialmente valiosa para enfrentar desafios de saúde pública como obesidade, diabetes e doenças neurodegenerativas. Simultaneamente, oferece oportunidade para conexão com tradições ancestrais e desenvolvimento de qualidades como autodisciplina, presença e consciência.
Como toda intervenção poderosa, o jejum deve ser abordado com conhecimento, respeito e consideração por circunstâncias individuais. Nem todos os protocolos são adequados para todas as pessoas, e condições médicas específicas podem contraindicar certos tipos de jejum. A orientação profissional é particularmente importante para jejuns prolongados ou para indivíduos com condições médicas preexistentes.
Ao integrarmos esta prática ancestral em nossas vidas contemporâneas, somos convidados a participar de uma tradição que transcende fronteiras culturais e temporais, conectando-nos simultaneamente a nossas raízes mais profundas e às fronteiras mais avançadas da ciência da longevidade e saúde metabólica.
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